Vinte e quatro horas depois de cruzar a linha de chegada, já em casa, finalmente caiu a ficha... Eu consegui corer 100 km.
Pensei muito se deveria escrever sobre isto. Afinal, eu sempre repeti para mim mesmo que "eu corro para evoluir pessoalmente, não para me vangloriar". Mas sei lá, achei que seria legal expor minha experiência para aqueles que tem curiosidade. Peço desculpas se o texto parecer um pouco vaidoso. Alimentar meu ego aqui não é o objetivo e se você ler o texto até o final vai entender por que.
Uma semana antes
Sempre me esforço o máximo para não criar expectativas sobre algo. Mas confesso que desta vez foi bem difícil... Sempre li livros e assisti documentários de pessoas incríveis relatando a experiência de correr por tantas horas seguidas e... Estas pessoas eram incríveis, lendas vivas com super poderes. Tentar imitar eles para mim estava fora da realidade, mas eu queria pelo menos tentar, sabe? Dar um passo além, pelo menos uma vez na vida.
Descansei durante a semana, me alimentando bem com carboidratos e me hidratando todo o tempo. Uns quatro dias antes da corrida eu resolvi dar uma corridinha leve só para testar as lanternas. Nada muito pesado.
0 - 14km
O primeiro checkpoint da corrida estava posicionado a aproximadamente 14km da linha de partida. Não tive muitos problemas nesta primeira parte, o clima estava perfeito e a maior parte do tempo tinha pessoas por perto para conversar e fazer comentários sobre o percurso. Deu para aprender um pouco sobre a história da corrida e também receber conselhos dos veteranos.
É impressionante a quantidade de pessoas que se dispõem a correr este tipo de corrida todos os anos. Só este ano, tinham cerca de 150 pessoas correndo os 100km. Também me impressionou a diversidade das pessoas e a idade.
A maioria das pessoas acreditam que corredores de longas distâncias devem ser obrigatoriamente geneticamente beneficiados (isto é, magro, com canela fina...) e não muito velhos.
Eu já tinha lido algo sobre isto mas nunca presenciei na prática: a maioria dos corredores lá tinham acima de 40 anos (alguns mais de 60), e também tinha gente de toda forma possível: magro, gordo, alto, baixo, concentrado, extrovertido. Mal humorado, piadista, filósofo e até pessimista.
14 - 44km
Lethbridge fica localizado na parte central da província de Alberta, no Canada. O clima no verão pode chegar a 36 graus e, em alguns pontos do percurso da corrida, ate 42 graus. Corremos ao longo de um canyon. Portanto a maior parte do percurso era constituído de subida e descidas íngremes.
A outra parte do percurso era basicamente lama. Legal. Ótima escolha para os primeiros 100 km Igor!
Corri estes 30 km relativamente bem, tentando me controlar muito para não gastar toda minha energia (o que não adiantou nada no final das contas) pois sabia que tinha muito chão pela frente. Nesta parte eu comecei a me preocupar um pouco com a noite pois alguns trechos da trilha eram bem confusos e a sinalização não estava muito boa. Além disso tinha muita poça de lama que não dava para ver devido a grama alta.
Neste trecho também descobri como o quadrupedal pode ser útil na prática. Alguns subidas eram tão inclinadas que eu achei mais eficiente subi-las de quadrupedalando do que esmagar meu quadríceps mais do que já estavam esmagados.
Perdi a conta de quantas pessoas me perguntaram se eu estava me sentindo bem e se eu precisava que alguém me buscasse. Mas as vezes você precisa deixar a vaidade de lado e fazer o que deve ser feito. Encargos sociais que você aprende a ignorar com o Parkour.
As descidas também são um grande problema neste tipo de corrida. Se você não estiver fisicamente preparado o impacto nos joelhos, pélvis e parte inferior da coluna podem tornar sua corrida uma sentença de lesão para o resto da vida. O que leva muitas pessoas a desistirem da corrida.
44 - 60 km
Depois de superar minha quilometragem (o máximo que tinha corrida antes disso foi uma maratona, 42km), recebi algumas palavras de encorajamentos dos voluntários e comi bastante batata chips para repor o sódio do organismo.
Uma voluntária se ofereceu para encher minha mochila com água e disse que só faltava 7km para completar uma volta. E daquele checkpoint para o final da primeira volta só tinha uma subida e descida.
Isto me animou bastante. Sério. Meu joelho direito estava começando a me preocupar.
Saí do checkpoint feliz da vida por estar quase terminando a primeira volta e até me dei o direito de correr um pouco mais rápido. Quando eu me deparei com a colina que eu teria que subir, quase que eu voltei para agradecer a moça por não ter me dito que a ultima subida da volta era a mais inclinada e longa.
Esta subida sugou todas as energias que eu tinha economizado até aquele momento e eu tive que ter muito controle psicológico para não parar ali mesmo para descansar.
Foi nesta hora que eu me dei conta que eu iria correr algumas boas hora à noite, só com a lanterna. E também me dei conta que era melhor parar de pensar em tempo ou qualquer coisa do tipo. Afinal, eu teria que correr aquilo tudo de novo (segunda volta), à noite, no frio e depois de 9 horas de corrida constante.
60 - 75km
Pela primeira vez eu parei de correr direto e tive que começar a caminhar nos percursos que eu achava que me sugaria muita energia. Todo meu corpo estava dolorido, mal conseguia dobrar meu joelho direito e meus músculos das pernas já tinha ido para o espaço a tempo.
Tentei traçar pequenos objetivos durante a prova, como acompanhar tal pessoa até determinado lugar. Ou correr por 10 minutos seguidos. Subir aquela parte sem parar... Beber água só depois que eu descer ali.
Neste momento eu acho que falta glicose e seu cérebro começa a te pregar peças. Estava cada vez mais difícil concentrar no objetivo, eu já mal conseguia conversar com as outras pessoas por que eu simplesmente não lembrava a maioria das palavras em inglês.
Parar ajudar, foi neste trecho que o sol se pôs eu tive que começar a correr com a lanterna na cabeça. Quando fiz os testes na semana anterior eu achei que seria melhor levar uma bandana para não machucar a testa com o atrito, e isto foi essencial por que mesmo com a bandana minha testa ficou marcada.
Quando cheguei no checkpoint do 75 km decidi não ficar muito tempo ali. Pensar muito neste ponto da corrida não era uma boa ideia... Ainda mais com pessoas super carinhosas fazendo de tudo para te ajudar e um cantinho quetinho, com um travesseiro te chamando "Vem cá Igor, só uma sonequinha!".
75 - 91 km
Estes 16 km foram, de longe, os mais difíceis de minha vida. Este trecho era o mais longo sem nenhum checkpoint (ou seja, sem comida e água) e era praticamente apenas subida e descida. Eu estava sentido tanta dor que nas descidas eu simplesmente colocava a bunda na terra e ia arrastando até lá embaixo. Nas subidas eu subia engatinhando e me agarrando a grama e as vezes aos cactos, o que fez minha mão estar doendo bastante até agora - e me impediu de escrever este texto mais rápido, uma vez que eu não consigo usar a ponta do meu indicador esquerdo.
Neste trecho eu andei a maior parte do tempo, mesmo nas partes planas. Demorei quase 5 horas para percorrer 16 km e perdi a trilha algumas vezes, Neste trecho eu "taquei o foda-se" para o tempo e disse para mim mesmo que iria terminar a prova, nem que fosse arrastando.
91 - 100km
No checkpoint dos 91 km eu fiz questão de sentar (pela primeira vez em 18 horas) e comer muito. Comi batata, macarrão e me esbanjei nas guloseimas. Conversei com um dos organizadores e vim a descobrir que 25% dos corredores tinha desistido até então. Fiquei um pouco triste imaginando como uma pessoa que desiste deve se sentir mal no dia seguinte.
Depois de 20 minutos, levantei, coloquei minha mochila nas costas e repeti para mim mesmo que era agora ou nunca. Eu estava 9 km do meu objetivo e depois daquilo eu teria as melhores horas de sono da minha vida.
Depois desta horas de sono eu acordaria outro Igor... Eu seria o Igor que correu 100 km e, independente de quantas pessoas existem lá fora correndo mais rápido e ainda mais longe, correr 100km não deixa de ser uma conquista pessoal foda.
Com este pensamento eu sai deste checkpoint correndo igual um maníaco, para só parar na linha de chegada.
Linha de chegada
Os 100 metros restantes foram os mais recompensadores de todo o percurso. Nestes 100 metros um filme passou em minha cabeça... Todo o treinamento e tempo gasto neste objetivo. O cansaço depois de trabalhar 10 horas seguidas e ainda assim sair para correr só não para não perder um dia de treino. Todas pessoas que duvidam e fazem uma cara de "ele não tem noção do que está falando"...
Eu pensei em tudo isto e conclui, antes de cruzar a linha de chegada com um sorriso no rosto e lágrimas nos olhos, o quanto eu tenho sorte nesta vida.
O quanto eu sou sortudo por ter a família que tenho. Ter um pai atencioso e uma mãe que sempre acredita em mim, independente de quão idiota meu objetivo pareça.
Ter primos que comemoram minhas conquistas como se fossem deles próprios. Tios e tias que se orgulham por mim e que me dão força para continuar lutando.
Também pensei em o quanto eu sou sortudo por ter encontrado ano passado as melhores pessoas da Terra! Becky e Pete Lepori. Mr. Joe e Brittany... Cara, o que seria de mim se eu tivesse parado em qualquer outro lugar que não fosse a fazenda deles?
E, finalmente, o quanto eu sou privilegiado pelo destino por ter conhecido o Parkour lá atrás, em 2008.
Todas as transformações que ocorrem em mim desde então. Todas as pessoas estupidamente fortes e inteligentes que eu encontrei até hoje.
É difícil encontrar uma explicação universal e meus pensamentos estão sempre mudando. Mas estes últimos 100 metros me fez pensar o quanto é importante ter pessoas boas do seu lado. Alguém para abraçar, saca? Não importa o quanto durão você seja e nem quantas vezes você repita para Deus e o mundo que você faz tudo sozinho, uma hora ou outra você precisa de ajuda - mesmo que você não se dê conta que está sendo ajudado.
Atitude é essencial, mas ninguém faz nada sozinho...
Considerações finais
Considerações finais
Sobre aplausos e gritos de parabéns, cruzei a linha de chegada depois de 21 horas e 19 minutos.
Feliz da vida e muito cansado, fui abraçado por uma mulher que eu nem conhecia e várias outras pessoas vieram me dar os parabéns. Um veio com uma cadeira super confortável (de onde eles tiram estas cadeiras?), outro me trouxe água e até um cobertor.
Não me lembro de muita coisa... Sei que eu estava com muito sono, mal conseguai manter meus olhos abertos. Também estava tremendo bastante. Duas mulheres me ajudaram a levantar e me levaram para um trailer cheio de colchão inflável e cobertor. No caminho eu consegui ver o vencedor das 100 milhas (160 km) cruzando a linha de chegada... Como eu queria ir lá dar meus parabéns! Mas estava muito cansado e só me lembro das mulheres jogando os cobertores sobre mim e dizendo que voltariam em 30 minutos "just to check if you are okay".
Uma coisa é você ler ou ouvir falar de uma pessoa que corre 160 km. Mas quando você vê alguém cruzando a linha de chegada em 21 horas e meia depois de correr 160 km, você meio que se sente motivado. Você vê com seus próprios olhos que isto é humanamente possível.
Depois desta corrida com um percurso tão difícil estou motivado a tentar 100 milhas. Ainda não encontrei nenhuma corrida no final deste ano próxioma de onde eu moro. Portanto ainda não tenho data marcada.
Só mais uma reflexão...
Só mais uma reflexão...
É claro que é ótimo ouvir elogios e palavras de incentivo depois de realizar algo como o que eu realizei. Mas também me deixa um pouco triste ver o quanto as pessoas acham que isto é impossível.
Desde crianças somos ensinados que errar é algo ruim, que pessoas boas sempre acertam. E isto é a mentira mais idiota que vivemos hoje.
As pessoas vivem com medo de errar, e por isto não tentam. Aceitam uma vida medíocre e desistem fácil dos seus objetivos. E este é um dos motivos que me levaram a escrever este relato.
Talvez você pense que correr cem quiiometros é uma conquista fora da realidade para você. Que isto é coisa para os geneticamente beneficiados ou que você não iria conseguir por causa disto ou daquilo. Mas a mensagem que eu gostaria de deixar com este texto é que correr 100 km é possível sim! Para a maioria das pessoas.
Você pode correr 100 km, 200 ou 300. Ou pode conquistar o que quer que você queria, mas antes de qualquer coisa, VOCÊ PRECISA ACREDITAR QUE PODE, PORRA!
Show man! Tu é foda!
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ResponderExcluirIgor, você é sempre mto inspirador, muito obrigada por dividir suas experiências de uma forma tão leve e bem escrita.
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